“A musicalidade dos povos nessa região incluía aspectos como coral, criação de instrumentos, composição, interpretação, execução, performance elas eram ministradas nas aulas nas reduções, comum dentro da tradição jesuíta”, explica o autor do livro Juliano Ozga.
“A unidade dos corações é alcançada de forma mais profunda pela união das vozes”: estas palavras do Papa Francisco nos conduzem a uma viagem na história musical da fé na América colonial, e nos fazem compreender o porquê da importância dada à vivência da música nas Missões Jesuíticas, como caminho de encontro com Deus e com os irmãos, na liturgia diária dos povoados. No livro intitulado “A Música Barroca Missioneira Jesuítica Guarany: Domenico Zipoli e Anton Sepp”, do escritor gaúcho Juliano Gustavo dos Santos Ozga, somos convidados a despertar para a musicalidade das Missões Jesuíticas.
O livro de Juliano nos convida a reconhecer e valorizar a riqueza da música nas Missões Jesuítico-Guaranis. Além disso, ele nos lembra da importância de respeitar e valorizar as tradições e conhecimentos dos povos indígenas, que têm uma história única e relevante para o Brasil.
O autor, com formação em Filosofia e mestrado em Estética e Filosofia da Arte, destaca não apenas a produção musical, mas também os desdobramentos que se seguiram a ela. Ele ressalta a importância da relação entre guaranis e jesuítas, enfatizando que os indígenas possuem suas próprias percepções. Eles não foram manipulados nem subjugados, mas sim têm uma alma e uma inteligência próprias, além de tradições ancestrais.
Juliano também destaca o alto nível civilizatório alcançado no período das Sete Povoações das Missões. Essas comunidades indígenas e jesuíticas possuíam um desenvolvimento humano e conhecimento significativos. Estavam envolvidos em várias atividades importantes, como observatórios astronômicos, fundições avançadas, trabalho com cristal e vidro, além de deixarem um legado na arquitetura, agricultura, política social, música, escultura, policromia em madeira e fabricação de instrumentos musicais.
Como nasceu seu interesse pela música dos guaranis?
Esse interesse nasceu conhecendo esse tipo de música Barroca missioneira, que era elaborada, criada, composta e executada nas missões na Província de Paracuaria, que era uma extensão no que é hoje o Paraguai, mais Argentina, Rio Grande do Sul e Uruguai, ou seja, a antiga Província de Paracuaria, e através do acervo que no Instituto Histórico de São Luiz Gonzaga existe, que começou esse interesse pela música. Ao mesmo tempo em que estudava Filosofia na UFSM – Universidade Federal de Santa Maria, através desse contato iniciei as disciplinas de história da música no curso de música. Entao esse foi o inicio deste trabalho de musica, através desse manancial histórico-cultural e arqueológico, de preservação da história das Missões do Rio Grande do Sul e do Brasil também, que é Instituto Histórico Geográfico de São Luiz Gonzaga na pessoa da saudosa memoria da Ana Olívia do Nascimento, que muitas pessoas incentivou, apoiou com a semente da importância de estudar a história indígena das Missões.
Qual era a importância da música nas reduções?
Dentro dessa parte da pesquisa de história da música, um dos meios para tocar a alma humana, não só na tradição dos povos primitivos; mas você consegue ver isso bem representados nos Salmos Bíblicos, nos Salmos de Davi e Salomão. Você também vê nos hinos musicais da tradição oriental, na Índia, você também vê muito claramente na música africana, parte percussiva e não só percussiva, na Marimba, instrumento africano de teclas com notas percussivas. Então você vê essa tradição de como chegar através da música a uma instância espiritual elevada, ou seja, qual o papel da música na religação com o espiritual. Dentro de varias tradições no globo terrestre a música é talvez na minha opinião, a que mais fornece elementos, estruturas, performance, para fazer essa papel entre o humano e o espiritual. De que forma? Na antiguidade, todo som, toda a música era uma recepção da divindade para o homem, ou seja, era uma recepção.
Essa mudança, do humanismo no ocidente que passou do homem para o universo, é uma mudança recente, vamos falar assim de 500 anos, mas 10 mil anos de antiguidade, 12 mil, tradição Umbu, a música e a percussão são elementos que possuem um desenho rítmico e uma lirurgia dentro da sua cosmologia, falamos aqui em cosmologia Guarani, Charrua, Quechua, Mapuche, são vários povos originários só na América do Sul, essa importância foi muito elaborada, estruturada e desenvolvida pelos jesuítas junto com os Guaranis, por que eles tinham uma predisposição ao ouvido, porque é uma questão da tradição oral.
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Como foi introduzida a musicalização neste período da história?
Sobre a introdução da musicalização no período barroco jesuíta nas Missões, que seria tecnicamente no Rio Grande do Sul, de 1626 da primeira entrada por São Nicolau, que é hoje São Nicolau, até 1754, totalizando mais de 100 anos. Essa parte provém de toda tradição jesuita da Província de Paraquaria, cuja sede era em Córdoba, Argentina, ou seja, tradição jesuíta. Um exemplo é a Escola de Filosofia, uma das mais antigas da América do Sul, localizada em Córdoba.
As pessoas que adentravam na Companhia de Jesus, elas já possuíam uma formação anterior, em Salamanca, em várias regiões da Europa, como Alemanha, Suíça, Paises Baixos. Eram pessoas de vários locais e de diversas universidades que adentravam na Companhia de Jesus, ou seja essa introdução da musicalização veio através dessa formação de música que foi aplicada quando chegaram aqui à América do Sul. Toda essa tradição musical europeia foi translada através destes mestres músicos formados já, com grande gabarito, muitos dos quais mencionados no livro. Especificamente, Antonio Sepp e Domenico Zipoli, são dois instrumentistas e organistas, musicos, maestros que já tinham uma trajetória musical consolidada na Europa. Ao escutar suas músicas, é possível perceber o grau de desenvolvimento musical, esse tipo de musicalização também foi introduzida através de fábricas de instrumentos musicais, como a de Antonio Sepp na região das Missões de São João Batista, que hoje está próxima a Entre-Ijuís e Santo Ângelo, nas Missoes. Nessas fábricas, eram produzidos muitos instrumentos musicais, que foram encontrados nos inventários das Missões Jesuíticas.
Esses instrumentos musicais eram fabricados por jesuítas na região das Missões do Paraguai, foram levados para a Europa pelo alto nível de acabamento, tipo de madeira utilizada, muitos deles dentro desta tradição histórica foram levados para a Alemanha, foi um trabalho desde iniciar a construção até a fabricação dos instrumentos, com base na bagagem histórica desses maestros, criando assim uma escola de música e uma tradição musical na América do Sul, com os índios guaranis, por intermédio da Companhia de Jesus. Quando falamos em música barroca do período barroco, jesuita com os jesuítas, guarani com os índios guaranis, ou seja missioneira, por que era nas Missões Jesuíticas. Foi um trabalho completo de criaçao deste ambiente musical.
Como foi a construção diante da Música Barroca com a musicalidade destes povos americanos?
A região missioneira, hoje parte do Rio Grande do Sul, não fazia parte do domínio do Império Português durante o período colonial brasileiro. Portanto, essa região não está inserida na história da música colonial brasileira no contexto cronológico colonial, pois, embora esteja localizada onde atualmente é o Brasil, naquela época não estava sob domínio português. Assim, essa região fica fora da tradição musical colonial portuguesa no Brasil.
A musicalidade dos povos nessa região incluía aspectos como coral, criação de instrumentos, composição, interpretação, execução, performance. Elas eram ministradas nas aulas nas reduções, comum dentro da tradição jesuíta. Como uma disciplina, uma matéria, mas não como matéria universitária, ela tinha grande importância nos atos litúrgicos, como as Missas da manhã e as orações. O campanário, que cantava os sinos, ele era uma demarcação clara de um conceito chamado de “arquitetura sonora”, como o sino mantinha um ritmo, essa rítmica jesuíta do dia a dia, era pautada por vários elementos, estudos , trabalhos, reflexões a música entrava dentro desse ritmo diário, dessa liturgia diária no cotidiano das Missões.
Além disso, a música também era uma forma de educação pedagógica através da música, ensinada e praticada por meio da leitura e de Salmos, salmodiados, cantados, era também uma forma de não só ensinar como praticar. Como exemplo nas Missões de São Luís Gonzaga … onde era ensinada uma educação formal de escrita e prática, incluindo letras e cálculos. Dentro de um projeto de educação de Paideia, que é termo grego pra uma pedagogia jesuítica, desempenhava um papel crucial nesse ensino, abordando matérias como geometria, aritmética, música e arquitetura e outras, evidenciadas nas obras arquitetônicas nas Missões.
Dessa forma, a importância da pedagogia universitária jesuítica, aplicada no ensino aos Guarani nas missões, demonstrando um exemplo de tipos de pedagogia que incluía ensino, pesquisa e extensão, sendo uma prática já efetuada no ambiente guarani-jesuíta das Missões.
Há alguma abordagem em particular no livro, algum aspecto em especial?
Este livro nasceu primeiramente em agradecimento ao convite para uma palestra para o 1º Seminário de Música Missioneira, realizado em 2 de junho de 2023 na Praça Jaime Caetano Braun, em São Luiz Gonzaga, capital estadual da música missioneira no Rio Grande do Sul. Esse convite foi feito pela Associação ASMUS, tendo como presidente o Missioneiro, reconhecido músico que toca harpa paraguaia, harpa gaúcha ou harpa crioula, o amigo músico e mestre missioneiro, Mário Meira, de São Luiz Gonzaga, através do convite se reuniu este material que se transformou em livro.
A estrutura do livro se divide em partes, abordando temas como a música barroca missioneira jesuítica-guarani, o acervo barroco latino-americano e o programa educativo “Barroco Latino” da rádio UFOP educativa.
Além disso, destaca-se a influência do Instituto Histórico Geográfico de São Luiz Gonzaga, que serviu como base para a criação do programa “Barroco Latino” O livro também apresenta uma abordagem da música Barroca na região da Bolívia, ressaltando festivais e produções que contribuem para o resgate e preservação dessa tradição musical. Com 133 páginas, o livro procura abordar de forma inicial a complexa temática da música Barroca missioneira jesuítica Guarani, ciente de que há muito mais material e compositores a serem explorados, sendo esta uma introdução essencial para um entendimento mais aprofundado desse contexto musical.
Fonte: Vatican News