“Ninguém nunca falou tanto sobre a Ucrânia na história”, lembra o historiador Bernard Lecomte, que acompanhou a maioria das viagens de João Paulo II, incluindo sua visita à Ucrânia em junho de 2001
“Oque João Paulo II está fazendo em Kiev?” Esse pergunta repetiu-se entre muitos habitantes da capital ucraniana, vendo o papamóvel andando pelas ruas de sua cidade entre sábado 23 e domingo 24 de junho de 2001.
Preparada com muito cuidado e muita oração, a visita de João Paulo II a Kiev, berço do cristianismo russo, sempre foi seu sonho.
Riscos
Certamente João Paulo II sabia que estava correndo grandes riscos ao ir para lá, especialmente porque o contexto político da época era particularmente turbulento.
Algumas semanas antes, o primeiro-ministro reformador Victor Yushchenko havia sido deposto após um ano de crise identitária e política. Quanto ao presidente, Leonid Kutchma, parecia definitivamente desacreditado no país.
A visita de João Paulo II assumiu então um significado radicalmente novo, pois “só um polonês que viveu sob o regime comunista” poderia compreender a situação, como observa a ensaísta Anne Daubenton em seu livro Ukraine, a indépendance à tout prix (Buchet-Chastel).
Crise
Quando, enfraquecida por esta crise, uma parte dos ucranianos questiona a independência de seu país, adquirida apenas dez anos antes, João Paulo II não hesita em lembrar o que é a Ucrânia.
Em um ucraniano impecável, ele evocou o passado e as tradições do vizinho da Polônia. Ele citou alguns dos maiores poetas e escritores, até cantando algumas canções folclóricas que muitos ucranianos haviam esquecido. Imperturbável, ele destilou sua mensagem sublinhando assim a evidente vocação europeia da Ucrânia:
Na palavra Ucrânia está contida a chamada à grandeza da vossa Pátria que, com a sua história, testemunha a sua singular vocação de fronteira e de porta entre o Oriente e o Ocidente. Ao longo dos séculos, este País foi encruzilhada privilegiada de culturas diferentes, ponto de encontro entre as riquezas espirituais do Oriente e do Ocidente. Há na Ucrânia uma evidente vocação europeia, realçada também pelas raízes cristãs da vossa cultura. […] Oxalá esta Terra continue a desempenhar a sua nobre missão, com o orgulho expresso pelo poeta há pouco citado quando escrevia: “Não existe no mundo outra Ucrânia, não há outro Dniepre”. Povo que habitas nesta Terra, não te esqueças disto!
Uma viagem profética
Convencido do papel político e religioso da Ucrânia como “ponte” entre os “dois pulmões” do velho continente (o ocidental com a Europa ocidental e o oriental com a Rússia), João Paulo II sentiu imediatamente uma proximidade espiritual com ela.
Para Bernard Lecomte, autor de uma biografia de João Paulo II, a missão do papa polonês foi muito bem pensada: Karol Wojtyła passou muitos anos em Lublin, a poucos passos da fronteira ucraniana, como professor de teologia. Para ele, a Ucrânia era “o jardim ao lado: era quase sua casa, ele conhecia a Ucrânia melhor do que os ucranianos”. Lecomte afirma:
O primeiro evento de sua viagem em 2001 aconteceu na véspera de sua chegada: manifestações contra sua vinda, dirigidas pelo Patriarcado de Moscou. Afinal, a palavra que aparecia em todas as críticas dos opositores de João Paulo II na época era “proselitismo”. Uma acusação falsa, porém ainda útil: no uso dessa palavra encontramos a espinha dorsal da guerra atual, já que é disso que Vladimir Putin acusa os europeus. E para tanto conta com o apoio do Patriarcado, o mesmo que acusou João Paulo II de fazer proselitismo.
Portanto, não é sem contexto que João Paulo II deu aos ucranianos um grande curso de história. Antes de deixar Kiev em 27 de junho de 2001, ele deixou para os ucranianos esta frase enigmática:
Obrigado a ti, Ucrânia, que defendeste a Europa na tua incansável e heróica luta contra os invasores.
Hoje, a dimensão profética dessa frase de João Paulo II assume uma dimensão tão inesperada quanto impressionante.
Fonte: Aleteia