“Sei por experiência própria como se sentem os pacientes que lutam para respirar”
As 3 covids do Papa Francisco: foi com a atual pandemia que o pontífice comparou três períodos árduos de doença e solidão que teve de enfrentar na vida e que lhe trouxeram aprendizados que ele julga transformadores. Francisco fala sobre essas três “situações-covid” num livro-entrevista que será publicado em dezembro, na Itália: “Ritorniamo a sognare” (“Voltemos a sonhar”). A obra é escrita em parceria com o jornalista Austen Ivereigh. O trecho da obra em que o Papa fala das suas “3 covids” foi antecipado pelo Vatican News.
1 – O período de doença
Francisco relata:
“Quando eu tinha 21 anos contraí uma doença muito grave, tive minha primeira experiência de limitação, dor e solidão. Mudaram minhas coordenadas. Durante meses eu não sabia quem eu era, se iria morrer ou viver. Mesmo os médicos não sabiam se eu conseguiria sobreviver. Lembro-me de um dia ter pedido a minha mãe, abraçando-a, para me dizer se eu ia morrer. Eu estava no segundo ano do seminário diocesano em Buenos Aires. Era 13 de agosto de 1957. Fui levado ao hospital ao constatarem que eu não tinha o tipo de gripe que é tratada com aspirina. Tiraram um litro e meio de água do meu pulmão. Depois lutei entre a vida e a morte. Em novembro, fiz uma cirurgia para remover o lobo superior direito do meu pulmão. Sei por experiência própria como se sentem os pacientes com coronavírus quando lutam para respirar em um respirador”.
O Papa relata que uma das enfermeiras era uma freira dominicana que tinha sido professora na Grécia. Quando o médico saiu da sala após o primeiro exame, essa freira mandou as outras enfermeiras dobrarem a dose do tratamento que o médico tinha prescrito, porque, por experiência, ela sabia que o jovem Bergoglio estava morrendo. Para o agora Papa Francisco, foi a irmã Cornelia quem salvou a sua vida:
“Graças ao contato habitual com os doentes, ela sabia mais do que o médico de que os pacientes precisavam. E ela teve a coragem de usar essa experiência”.
O remédio do silêncio
Outra enfermeira também lhe dava secretamente doses extras de calmantes. Francisco comenta:
“As pessoas vinham me visitar e me diziam que eu ficaria bem, que nunca mais sentiria toda aquela dor: palavras sem sentido e vazias, ditas com boas intenções, mas nunca chegaram ao meu coração. A pessoa que me tocou mais profundamente, com seu silêncio, foi uma das mulheres que marcaram a minha vida: a irmã María Dolores Tortolo, minha professora quando criança, que me preparou para minha Primeira Comunhão. Ela foi me visitar, pegou a minha mão, me deu um beijo e ficou em silêncio durante um longo tempo. Depois me disse: ‘Você está imitando Jesus’. Não precisava dizer mais nada. A presença dela, o seu silêncio, me deram um profundo consolo. Depois dessa experiência, eu tomei a decisão de falar o mínimo possível quando visito pessoas doentes. Eu só lhes dou a mão”.
2 – O período na Alemanha
Em 1986, o futuro Papa viveu o que chama de “covid do exílio”. Ele foi estudar alemão e procurar material para a sua tese, mas se sentia deslocado. Fazia caminhadas até o cemitério de Frankfurt e de lá via os aviões decolando e pousando, o que aumentava as saudades da Argentina. Seu país, aliás, ganhou a Copa do Mundo naquele ano, mas ninguém tocava no assunto com ele.
“Era a solidão de uma vitória sozinho, porque não tinha ninguém para compartilhá-la; a solidão de não fazer parte de nada, o que faz de você um estranho (…) Às vezes, o desenraizamento pode ser uma cura ou uma transformação radical”.
3 – O período em Córdoba
A terceira “covid” do Papa Francisco foi o seu período em Córdoba, na Argentina, de 1990 a 1992:
“Passei um ano, dez meses e treze dias naquela residência jesuíta. Celebrava a missa, confessava e oferecia direção espiritual, mas nunca saía de casa, exceto quando ia aos correios. Foi uma espécie de quarentena, de isolamento, como aconteceu com muitos de nós nos últimos meses, e me fez bem. Isso me levou a amadurecer ideias: eu escrevia e rezava muito. Até então, tinha tido uma vida ordenada na Companhia de Jesus, baseada na minha experiência primeiro como professor dos noviços e depois de governo a partir de 1973, quando fui nomeado provincial, até 1986, quando terminei meu mandato como reitor. Tinha me acomodado com aquele modo de vida.
Mas um desenraizamento como aquele, em que você é mandado para algum lugar remoto e o colocam como professor substituto, abala tudo. Seus hábitos, seus reflexos comportamentais, suas linhas de referência cristalizadas ao longo do tempo, tudo isso se transformou, desapareceu, e você tem que aprender a viver novamente, a colocar a sua existência novamente em ordem”.
Naquele período, aliás, o futuro Papa leu os 37 volumes da longa “História dos Papas” escrita por Ludwig Pastor. Ele nem sonhava que um dia seria ele próprio o Papa:
“Poderia ter escolhido um romance, algo mais interessante. Pensando onde estou agora, me pergunto por que Deus me inspirou a ler exatamente aquela obra naquele momento. Com aquela vacina, o Senhor me preparou. Uma vez que se conhece aquela história, não há muito que possa surpreendê-lo sobre o que acontece na Cúria Romana e na Igreja de hoje. Me ajudou muito!”
Os frutos das “covids”
Francisco reflete sobre os aprendizados que esses períodos de doença e isolamento ao longo da vida lhe trouxeram: mais tolerância, compreensão, capacidade de perdoar; uma nova empatia com os fracos e indefesos; e “paciência, muita paciência”, que é o dom de entender que as coisas importantes precisam de tempo, já que a mudança é orgânica, enfrenta limites e é preciso “trabalhar dentro deles e ao mesmo tempo manter os olhos no horizonte, como Jesus”.
O Papa acrescenta:
“Aprendi a importância de ver o grande no pequeno e de ter cuidado com o pequeno nas coisas grandes. Foi um período de crescimento em muitos sentidos, como o brotar novamente após uma poda minuciosa”.
Ele finaliza observando que, mesmo depois dessa faxina e renovação, continua sendo necessário vigiar e cuidar para não voltar a cair nos erros de antes:
“Como diz Jesus, o diabo volta, vê a casa ‘varrida e adornada’ (Lucas 11, 25) e vai chamar outros sete espíritos piores que ele. É com isto que devo me preocupar agora na minha tarefa de governar a Igreja: não cair nos mesmos defeitos de quando eu era superior religioso. Aprendi que sofri muito, mas se você se deixar mudar, sairá melhor. Mas se, ao contrário, você levantar barreiras, sairá pior”.
Fonte: Aleteia